sábado, 3 de setembro de 2011

MÍDIA, PRECONCEITO E REVOLUÇÃO


MÍDIA, PRECONCEITO E REVOLUÇÃO



Num livro publicado na Inglaterra em 1998, o linguista britânico JarnesMilroy escreveu (pp. 64-65): “Numa época em que a discriminação em termos de raça, cor, religião ou sexo não é publicamente aceitável o último baluarte da discriminação social explícita continuará a ser o uso que uma pessoa faz da língua “. Essas palavras me voltaram à lembrança quando li, no Jornal do Brasil do dia 10/11/ 2002, o seguinte trecho da coluna Coisas de política”, assinada pela jornalista Dora Kramer:

Castiço
Dúvida pertinente: até quando será considerado politicamente correto ignorar que o presidente eleito do Brasil comete crassos e constantes erros de português?
Queira Deus que, em breve, o assunto já possa ser abordado sem provocar grandes traumas, porque, daqui a pouco, será preciso rever os currículos das escolas do ensino básico, a fim de adaptar as lições sobre plural e concordância ao idioma que as crianças ouvem o presidente falar na televisão.

Evidentemente, não era a primeira vez que eu lia esse tipo de afirmação preconceituosa sobre o modo de falar de Luiz Inácio Lula da Silva — todos sabemos que esse foi um dos instrumentos de difamação lançados por seus oponentes nas disputas eleitorais de 1989, 1994 e 1998. O que me chamou a atenção foi a sobrevivência desses argumentos, com a mesma intensidade, mais de uma década depois.

Duas semanas mais tarde, o jornalista Daniel Piza escreveu, no Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo (24/11/2002):

Por que não me ufano: Lula, seus companheiros de PT e grande parte da população maltratam o idioma cortando o “s final das palavras e todas as concordâncias que a lógica sintática pede. Que não seja a morte do plural, em nenhum dos sentidos.

Esse é um comentário baseado em crenças tãoprimitivas e ultrapassadas pela ciência há tanto tempo que acaba depondo contra a inteligência de quem se arrisca a imprimi-lo num jornal de grande circulação. Seria algo assim como aconselhar os pais a não deixar que os filhos apontem para as estrelas à noite porque isso faz nascer verruga na ponta dos dedos...

Mas, afinal, por que eu deveria me espantar, se já tinha lido aquela afirmação de Milroy, que descreve com precisão as relações entre língua e poder, e se sempre tive consciência de que essas relações são facilmente compreensíveis para quem estuda a história da formação social e cultural do Brasil?

Seria muita ilusão supor que uma vitória como foi a de Lula nas eleições de 2002 bastaria para que o preconceito linguístico desaparecesse de vez da nossa sociedade. Afinal, de todos os conjuntos de superstições infundadas que compõem a cultura brasileira, nenhum é tão resistente, parece, quanto o das ideias preconcebidas que impregnam nosso imaginário a respeito de línguas em geral e, mais especificamente, da língua que falamos.


PRECONCEITO LINGUÍSTICO OU SOCIAL?

Faz algum tempo que venho me dedicando aoestudo do preconceito linguístico na sociedadebrasileira. A principal conclusão que tirei dessa investigação é que, simplesmente, o preconceito linguístico não existe. O que existe, de fato, é um profundo e entranhado preconceito social. Se discriminar alguém por sernegro, índio, pobre, nordestino, mulher, deficiente físico, homossexual etc. já começa a ser considerado “publicamente inaceitável” (o que não significa que essas discriminações tenham deixado de existir) e politicamente incorreto’ (lembrando que o discurso do ‘politicamente correto” é quase sempre pura hipocrisia), fazer essa mesma discriminação com base no modo de falar da pessoa é algo que passa com muita naturalidade”, e a acusação de falar tudo errado”, atropelar a gramática” ou não saber português” pode ser proferida por gente de todos os espectros ideológicos, desde o conservador mais empedernido até o revolucionário mais radical. Por que será que é assim?

É que a linguagem, de todos os instrumentos de controle e coerção social, talvez seja o mais complexo e sutil, sobretudo depois que, ao menos no mundo ocidental, a religião perdeu sua força de repressão e de controle oficial das atitudes sociais e da vida psicológica mais íntima dos cidadãos. E tudo isso é ainda mais pernicioso porque a língua é parte constitutivada identidade individual e social de cada ser humano — em boa medida, nós somos a língua que fruamos, e acusar alguém de não saber falar a sua própria língua materna é tão absurdo quanto acusar essa pessoa de não saber ‘ corretamente a visão (isto é, afirmar o absurdo de que alguém é capaz de enxergar, mas não é capaz de ver) ou o olfato (isto é, afirmar o absurdo de que alguém é capaz de sentir o cheiro, mas não de aspirá-lo). Nós somos muito mais do que meros usuários da língua: a noção de “usuário” faz pensar em algo que está fora de nós, uma espécie de ferramenta que a gente pode retirar de uma caixa, usar e depois devolver à caixa Nossa relação com a linguagem é muito mais profunda e complexa do que um simples “uso” — até porque essa relação se faz com a própria linguagem! Aliás, a própria palavra “relação”, aqui, não dá conta dessa complexidade.

Infelizmente, num longo processo histórico, o que passou a ser chamado de língua é uma coisa” que é vista como exterior a nós, algo que estaria acima e fora de qualquer indivíduo, externo à própria sociedade: uma espéciede entidade mística sobrenatural, que existe numa dimensão etérea secreta, imperceptível aos nossos sentidos, e à qual só uns poucos iniciados têm acesso. E por acreditar nisso queDaniel Piza pôde escrever que “Lula, seus companheiros de PT e grande parte da população maltratam o idioma”. E como se a língua não pertencesse a cada um de nós, não fizesse parte da nossa própria materialidade física, não estivesse inscrita dentro de nós — por isso ela pode ser “maltratada”, “pisoteada”, “atropelada”: a língua é vista como um Outro.
É como se nosso modo de falar fosse uma imagem defeituosa, tosca e mal-acabada de uma “língua” inacessível aos olhos e aos ouvidos dos mortais comuns. Por isso, a língua é difícil” — e não poderia ser diferente, já que é uma ciência oculta”, um saber hermético, quase esotérico.

Ora, a “língua” como uma “essência” não existe: o que existe são seres humanos que falam línguas. A língua não é uma abstração: muito pelo contrário, ela é tão concreta quanto os mesmos seres humanos de carne e osso que se servem dela e dos quais ela é parte integrante.
Se tivermos isso sempre em mente, poderemos deslocar nossas reflexões de um plano abstrato — a língua — para um plano concreto — os falantes da língua.

Isso significa o quê, na prática? Significa olhar para a língua dentro da realidade histórica, cultural, social em que ela se encontra, isto é, em que se encontram os seres humanos que a falam e escrevem. Significa considerar a língua como uma atividade social, como um trabalho empreendido conjuntamente pelos falantes toda vez que se põem a interagir verbal mente, seja por meio da fala, seja por meio da escrita. Por estar sujeita às circunstâncias do momento, às instabilidades psicológicas, às flutuações do sentido, a língua em grande medida é opaca, não é transparente. Isso faz da prática da interpretação uma atividade funda mental da vida humana, da interação social.

Em contraposição a essa concepção dinâmica de língua, a concepção tradicional, operando com unia abstração-redução — a famosa “ norma culta” — tenta nos apresentar essa norma (em sinonímia com “a língua”) como se fosse um corpo estável, homogêneo, um produto acabado, pronto para consumo, uma caixa de ferramentas já testadas e aprovadas, que de vem ser usadas para se obter determinado resultado e devolvidas para a caixa no mesmoestado em que as encontramos. E nisso reside uma das mais notáveis contradições da concepção tradicional de norma culta querer empregar essa norma (que não passa de uma abstração. impossível de ser exaustivamente descrita) como se fosse um conjunto de regrasde aplicação prática, concreta. Ora, hoje já sabemos que a língua (entendida como uma atividade social) não é apenas uma ferramenta que devemos usar para obter resultados: ela é a ferramenta e ao mesmo tempo o resultado, ela é o processo e o produto. E não é uma ferramenta pronta: é uma ferramenta que nós criamos exatamente enquanto vamos usando ela.

Essa concepção tradicional opera com uma sucessão de reduções: primeiro, reduz “língua’ a “norma (culta)”: em seguida, reduz esta norma culta a gramática — mais precisa mente. a uma gramática da frase isolada, que despreza o texto em sua totalidade, as articulações-relações de cada frase com as demais. e o contexto extralinguístico em que o texto (falado ou escrito) ocorre —. gramática entendi da como unia série de regras de funcionamento mecânico que devem ser seguidas à risca para dar um resultado perfeito e admissível. Essa concepção abstrata e reducionista de língua-norma-gramática é tão antiga que já se tornou parte integrante das crenças e superstições que circulam na sociedade. E essa cadeia sinonímica equivocada que permite a muita gente acreditar que o manual de gramática e o dicionário contêm as únicas possibilidades de uso da língua, como se fosse possível encerrar em livro toda a complexidade que governa as relações dos seres humanos entre si e consigo mesmos por meio da linguagem.

PARA QUEM VALEM ÀS REGRAS DE CONCORDÂNCIA?

A demonstração mais nítida que se pode oferecer do caráter eminentemente social do preconceito linguístico é que a noção de erro, sobretudo de erro crasso — como escreveu Dora Kramer no texto citado —, não é absoluta nem estática: a noção de erro varia e flutua de acordo com quem usa e contra quem. No caso em questão, é alguém das camadas privilegiadas da população que vê erro na língua dos cidadãos das outras camadas, as menos favorecidas (que. no Brasil, um país que os tenta índices de injustiça social entre os piores do inundo, constituem a ampla maioria da nossa população). Frequentemente, esses acusadores, por atribuírem a si mesmos um conhecimento linguístico superior, acima da média, denunciam erros também na fala dos membros de sua própria classe social e lamentam o descaso até mesmo dos falantes “cultos”, “pela língua de Camões”.

Mas vamos examinar novamente o caso. DoraKramer. Alguns meses antes de escrever o trecho citado acima, ela já tinha publicado, nomesmo jornal, em 3/7/2002, outros comentários sobre o modo de falar do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva:

Lula não vê contradição em discursar pelo incremento da “Educação neste país”, sem fazer uma única homenagem a um simples plural. Sobre a concordância verbal, então, melhor não descer a minudências.

Mais uma vez, a jornalista se preocupa com a concordância verbal e com a concordância nominal. Em ambas as colunas, Dora Kramer deixa bem claro seu total despreparo para tratar destes assuntos, uma vez que fala de “plural e concordância verbal” e de “lições de plural e concordância”, como se fossem duas coisas distintas, como se as regras de plural não fizessem parte das regras de concordância (verbal e nominal), como de fato fazem.

Suas observações sobre a escola também são, no mínimo, ultrapassadas, e revelam uma óbviadesinformação, já que de um bom tempo para cá tem havido uma radical mudança nas concepções pedagógicas sobre ensino de língua, concepções que já foram incorporadas inclusive nas próprias diretrizes oficiais de educação. Basta ler o que dizem sobre ensino de língua os Parâmetros Curriculares Nacionais, publicados pelo Ministério da Educação em 1998. As observações da jornalista, portanto, demonstram a atitude autoritária de quem se acha com o direito de opinar e propor legislação sobre o que desconhece, apenas por reverenciar o senso comum, sem criticá-lo com instrumental teórico adequado: não sendo linguista nem pedagoga, com que fundamentação ela pode sustentar suas propostas de revisão dos currículos escolares? Assim, seu recurso estilístico à ironia revela apenas uma patética ignorância, que rima com uma antiética arrogância.

O mais sintomático, porém, no que diz respeito à relação preconceito linguístico/preconceito social, é que, no trecho final da coluna de julho, a jornalista escreveu o seguinte:

Havia receio entre os petistas reunidos sábado passado, no Parque do Anhembi em São Paulo, com a possibilidade de vir a público gravações resultantes de grampos em telefones de altas figuras do partido.

Como já afirmei, os “erros crassos” de “concordância e plural” só são crassos quando cometi dos pelos outros, pelos que não pertencem ao meio social da acusadora, pelos que não tiveram o mesmo acesso que ela a uma cultura letrada, E pretensamente superior... Afinal, nesse trecho da coluna aparece algo que qualquer gramático conservador acusaria, sem pestanejar, de “erro crasso”, e justamente um erro de concordância verbal — de vir a público [ gravações Se são gravações, no plural, o verbo vir, pelas regras da concordância que a jornalista tanto preza, deve ria vir também no plural: virem. Então. “de virem a público [...] gravações “.

Como esse é um fenômeno linguístico muito interessante, vamos cuidar mais atentamente dele — e fingir que não vimos outro “erro crasso”, desta vez de regência, quando a jornalista usou a preposição com vinculada ao substantivo receio: “havia receio [...] com a possibilidade”. “Receio com”? Não seria receio quanto à possibilidade...? Não poderiam os leitores, segundo os critérios da própria jornalista, ter receio com ficar de dor de ouvido diante de tantos erros crassos”? E o que fazer com os “currículos das escolas do ensino básico”? Teríamos de adaptá-los “às lições sobre plural e concordância” (e de regência) que os leitores de Dora Kramer encontram em suas colunas? Não seria essa também uma vida pertinente”? Mas de nada serve rebater preconceito com preconceito: vamos, isto sim, tentar analisar os fatos com rigor científico.

Por que escrevi mais acima que a construção “de vir a público gravações” era um fenômeno linguístico interessante? Porque ele revela, com toda nitidez, o quanto é relativo o conceito de erro que rege a mentalidade das nossas classes letradas. As pesquisas científicas sobre a nossa língua têm mostrado que já se tornou uma regra gramatical do português brasileiro manter o verbo no singular quando ele antecede o sujeito, isto é, quando vem antes do sujeito na frase. Mesmo os brasileiros classificados de “cultos”, moradores das zonas urbanas, com escolaridade superior completa e alto grau de letramento, aplicam o tempo todo essa regra e dizem, com naturalidade: chegou os livros que eu encomendei, ou sempre cai umas gotas de azeite na toalha, ou vai todas as crianças pro cjuíntal, ou foi feito jd todas as alterações que você pediu, ou é todos esses ovos que ela vai pôr no bolo... E não só falam assim: também escrevem, como podemos ver nestes exemplos da imprensa brasileira.

(1)           "Nãoimporta AS SUCESSIIAS DECISÕES JUDI­CIAIS FAVOÁVEIS ao pagamento" (Correio Brasiliense,,28/11/2001 p. 3, c. 3).
(2)           "Falta ao governo FH decisões coraíosas e firmes., principalmente contra os par­tidos que o apoiam" (O Estado de S. Paulo., 17/9/1995, A-2, c. 2)
(3)           "Ainda não se sabe como será conduzida as negociações sobre o destino da política salarial na reunião que o presidente Itamar Franco convocou para amanhã à tarde no Palácio do Planalto" (Correio Brasiliense.,18/7/1993, p. 3, c, 2).
(4)           "Mas se a população de rua não for retira­da, de nada adiantará medidas de seguran­ça" (Jornal do Brasil,13/11/92, p. 13).
(5)           "Cresce de importância os percentuais dos candidatos periféricos" (Jornal do Brasil03/10/94, p. 3).
(6)           "Em todo canto surge sinais de alarme que deveriam nos inquietar" (Manche­te, 18/6/91, p. 92).
(7)           "Basta 10 a 15 minutos de aplicação diária que, em poucos dias, você elimi­na aquela gordurinha localizada que enfeia a sua barriga" [...] (Folha de S.Paulo, 1/09/96, TvFolha, p. 5, c.l).

E, é claro, podemos acrescentar "possibilidade de vir a público gravações..." (.Jornal do Bra­sil,3/7/2002, p. 2).

Existem propostas de explicação científica para esse fenômeno. Uma delas é que o português brasileiro, como grande número de línguas do mundo, é classificado como uma língua svo, isto é, uma língua em que a ordem mais frequente de ocorrência das palavras no enuncia do simples é SUJEITO-VERBO-OBJETO: [ - [ - [ uva] — outras línguas apresentam a ordem VSO ou SOV, por exemplo. Assim, no português brasileiro, tudo o que se colocar depois do verbo é intuitivarnente analisado pelo falante como objeto e, desse modo, mantido fora da esfera da concordância verbal. A regra de não-concordância com o sujeito posposto já se estabeleceu na língua falada pelos brasileiros, de todas as classes sociais e de todos os níveis de escolarização, sobretudo em situações de interação linguística menos monitoradas. E pelo visto começa a se estabelecer também na língua escrita mais monitorada.

POR QUE HÁ ERROS MAIS ERRADOS QUE OUTROS?

Meu objetivo aqui é mostrar que quando o “erro” já se tornou uma regra na língua fala da pelos cidadãos mais letrados, ele passa despercebido e já não provoca arrepios nem dores de ouvido — muito embora contrarie as regras da gramática normativa, aquelas que,teoricamente, deveriam ser seguidas pelas pessoas “cultas”, sobretudo quando escrevem textos que exigem mais “cuidado”. Assim, há errosmais “errados” (ou mais “crassos”) do que outros — a escala de “crassidade” e inversa mente proporcional à escala do prestígio social: quanto menos prestigiado socialmente é um indivíduo, quanto mais baixo ele estiver na pirâmide das classes sociais, mais erros (e erros mais “crassos”) os membros das classes privilegiadas encontram na língua dele.


Os falantes urbanos letrados detectam menos “erros crassos e constantes” na fala de pessoas de sua mesma origem social notoriamente privilegiada. Qualquer análise científica mais criteriosa é capaz de mostrar que as regras variáveis de concordância seguidas por Lulacomparecem, com frequência mais ou menos igual, na fala de outros políticos, de intelectuais, de empresários, de juristas, de professores de português, de jornalistas etc. No entanto, essas regras ficam mais evidentes e chamam mais a atenção quando são usadas por alguém com antecedentes biográficos rurais, de origem operária, vindo de uma região geográfica desprestigiada, e sem formação universitária. Na fala de um membro da elite letrada, esses erros são algo assim como “descuidos” ou “lapsos”, justificados por aquele chavão mais do que batido de que “essas pessoas podem até se permitir errar porque sabem a forma certa”que é como alguns professores tentam (sem sucesso) explicar a seus alunos as ocorrências de regras não-normativas na obra de grandes escritores ou na fala de pessoas importantes”. Essa mesma condescendência, no entanto, não é usada para classificar a fala dos cidadãos menos letrados: o mesmo fenômeno. agora, é tachado de erro crasso” e ponto final. Se você pensou na expressão “dois pesos e duas medidas”, é porque captou bem os critérios envolvidos nessas classificações. E isso tudo porque, como já mencionei, o que está sendo avaliado não é apenas a língua da pessoa, mas sim a própria pessoa, na suaintegralidade física, individual e social.

UM FATO HISTÓRICO EXTRAORDINÁRIO

A eleição de Lula à presidência da república tem uma importância histórica inegável: pela primeira vez, desde o início da história oficial do Brasil, uma pessoa com seus antecedentes biográficos e sociais alcança o posto rnáximo do poder político, um posto até então reserva do com exclusividade a representantes de uma mesma oligarquia.
Este mesmo evento tem uma importância igualmente histórica no que diz respeito às relações linguísticas dentro da sociedade brasileira: pela primeira vez, também, chega ao poder um representante das variedades linguísticas “populares”, com suas regras gramaticais que caracterizam a língua falada pela maioria da nossa população e que. justamente por isso - por serem majoritárias num país onde só se valoriza o que vem da minoria dominante —, sempre foram alvo de preconceito explícito da parte dos falantes das variedades linguísticas de prestígio. Ora, como escreveu minha aluna Sandra de Castro, da Universidade de Brasília, é muito mais fácil para a maioria do povo brasileiro identificar-se com a fala de Lula do que identifica-lo como “errada”.

Como analisar esse acontecimento? É possível fazer previsões sobre o futuro das relações linguísticas no Brasil depois dessa eleição? Será que o temor de pessoas como Dora Kiramer e Daniel Piza se confirmará, e os erros crassos e constantes” do presidente serão transforma dos em modelo do bem falar” e do português certo”, inclusive na escola?

Eu já adiantei, mais acima, que seria uma ilusão pensar que a eleição de Lula indicaria uma mudança radical nas relações linguísticas no Brasil. Essa afirmação precisa ser justificada. A história das línguas e das sociedades nos conta que para haver alguma grande mudança nos conceitos de língua “certa” e língua errada é preciso que também haja, ao mesmo tempo, uma grande e radical transformação das relações sociais.

Foi assim, por exemplo, na França: depois da Revolução francesa, as classes sociais dominantes — a nobreza e o alto clero, essencialmente latifundiárias — foram derrubadas, e no lugar delas se instalou a burguesia. Essa mudança de classe social no poder fez relações entre a sociedade e a língua francesa sofrerem uma transformação radical. A falados burgueses, que era desprezada pelos aristocratas do antigo regime, passou a gozar de prestígio e a servir de modelo para todas as demais camadas da sociedade. Aliás, de maneira sistemática, os governos revolucionários impuseram este novo francês” como língua oficial de toda a França, desestirnulando e até reprimindo o uso das muitas outras línguas e variedades empregadas nas diferentes regiões do país por comunidades numerosas Os Historiadores contam que o processo de “francização” daFrança se deu, logo após a Revolução, num período extremamente curto: em menos de cinquenta anos, o francês de Paris se impôs como “a língua”, tornando todas as demais extremamente minoritárias, verdadeiros fósseis de eras passadas, reduzidas ao status depreciativo de “dialeto”, “jargão” ou “patoá”. Estudando a história do francês, percebemos que é justamente a partir do final do século XVIII (a Revolução é de 1789) que certas formas linguísticas desaparecem do francês padrão e cedem seu lugar a formas novas, alçadas ao posto de modelo pela ascensão da burguesia que as empregava. Mas essas mu danças linguísticas radicais, essa “subversão herética” (como escreve Pierre Bourdieu) do conceito de “bom”, “certo” e “elegante” só foi possível porque uma grande revolução varreu a França de ponta a ponta, com tudo o que isso significa de conflito, violência, derrama mento de sangue, incêndios, massacres, além de toda uma subversão de valores, símbolos, conceitos, crenças etc.

Com intensidade bem menor, mas igualmente marcada por uma história revolucionária, foi o estabelecimento do “inglês americano”. Aocontrário do que ocorreu no Brasil — onde a independência foi tramada de cima para baixo e proclamada pelo próprio representanteda Coroa portuguesa —, os americanos se libertaram do domínio britânico pegando em armas e arriscando suas vidas pela criação de uma nação soberana. A guerra pela independência das colônias inglesas na América doNorte é chamada precisamente de Revolução Americana (1775-1783), e foi nela, aliás, que se inspiraram os ideólogos franceses que incentivaram, em seu próprio país, a derrubada do antigo regime feudal e aristocrático. Um dos movimentos intelectuais mais importantes, posterior à revolução americana, foi exatamente a constituição de uma língua” que representasse a identidade da nova nação surgida da guerra de independência. Este movimento será encarnado pelo célebre filólogo americano NoahWebster (1758-1843):

Inteiramente conquistado pela causa da independência nacional, Webster vê um nexo imediato entre a ruptura com a dominação política e econômica da Inglaterra e a ruptura com a hegemonia de uma norma linguística britânica. A jovem nação nascida da revolução precisará de sua própria línguaStephen Aléong (2001, pp. 167-168).

Webster vai consagrar toda a sua vida a criar uma gramática nacional americana, uma ortografia americana e, sobretudo, um dicionário do inglês americano, sua obra maior e pela qual até hoje é famoso, a ponto de seu nome ter se torna do, na língua inglesa, sinônimo de dicionário

A ESTRATÉGIA DA APROPRIAÇÃO

Nada disso aconteceu no Brasil, nem em 1822 nem, muito menos, em 2002. A eleição de Lula— pelo fato mesmo de ter sido uma eleição — não foi um processo revolucionário, no sentido histórico-sociológico do termo. Ele chegou à presidência de acordo com os mecanismos eleitorais previstos na lei: ele se submeteu ao jogoprevisto, cumpriu todos os rituais de um candidato convencional. Quanto à sua linguagem, basta comparar a fala do líder sindical do final dos anos 1970 com a retórica do presidenteempossado em 2003 para verificar a espetacular apropriação, por parte de Lula, das fórmulas linguísticas consagradas, das expressões idiomáticas características dos meios intelectualmenteprivilegiados, todo um discurso habilmenteconstruído para se adaptar às expectativas tantodas amplas camadas menos favorecidas quantodos setores mais conservadores da população.

Embora pessoas como Dora Kramer e Daniel Piza pareçam não ter sensibilidade para ver isso, é indiscutível que a língua falada por Lula está hoje muito mais próxima daquela que tradicionalmente se exige de um membro da elite política e intelectual. Com grande habilidade também, ele não abandonou os elementos característicos das variedades linguísticas“populares”, e sabe se servir muito bem deles quando fala de improviso para grandes multidões, recusando-se a usar uma retórica balofa e ornamentada de quinquilharias sintáticas e lexicais, que é a característica principal do falar difícil”, quase sempre para não dizer nada de substancial. Lula é um usuário extremamente competente dos múltiplos gêneros discursivos que tem à sua disposição — e este é o verdadeiro significado de saber “falar bem” uma língua.

A linguista e educadora brasileira Stella MarisBortoni-Ricardo, num colóquio sobre línguaportuguesa realizado lia Alemanha em janeiro de 2003, ao retraçar a trajetória de Luiz Inácio Lula da Silva, assim falou:

Nas campanhas em que foi derrotado [...] sofria muitas críticas por não ter um bom domínio da chamada língua culta. E notável o seu esforço de monitoração [...] principal silente nessa última campanha vitoriosa e nas suas elocuções formais já na condição de presidente da república.

A eleição de Lula não vai representar, como Dora Kramer receia (ou finge recear), uma mudança radical dos conceitos de língua certa e “bom português” tias escolas brasileiras e. sobretudo, no imaginário de nossa sociedade, no nosso senso comum. Este imaginário, este senso comum só poderiam ser radiocalmente desmantelados e substituídos por outros se todas as demais relações sociais sofressem uma ruptura igualmente radical e revolucionária.

Na conclusão de sua fala, Bortoni-Ricardoacertadamente declarou:

Numa sociedade como a brasileira em que a língua-padrão é claramente associada a classe social [...] uma criança pobre, de antecedentes rurais só poderá ter alguma oportunidade se for introduzida à cultura letrada por meio do processo escolar, a menos que,por uma conjunção quase mágica de talento, esforço pessoal e circunstâncias políticas,o letramento vá até ela e ela se torne umbrasileiro ou uma brasileira que alcance acidadania dominando os modos prestigiososde falar. Assim, pode ser até que essa criança chegue a ser presidente da república.

Que ninguém, então, fique em pânico: as escolas brasileiras vão continuar tendo como mis são principal e incontornável a de permitir a seus alunos uma integração cada vez maior e melhor na cultura letrada, o que significa (entre uma porção de outras coisas, muito mais importantes até) o ei das formas linguísticas mais valorizadas pelas camadas dominantes da sociedade, ainda que estas mesmas camadas não empreguem quase nunca essas formas antigas e em óbvio processo de falecimento.

A história pessoal de Lula é, sem dúvida, uma revolução “quase mágica”. mas é uma revolução individual, particular. digna de assombro, é claro, num país tão injusto quanto o nosso. E, justamente por isso, ela é a famosa exceção que confirma a “regra”. Todos os milhões de cidadãos pobres que, hoje, não têm acesso pleno à cultura letrada e às formas linguísticas prestigiadas continuarão sendo estigmatizados e mantidos bem distantes das vias de acesso à mobilidade social para o alto.

Situações de ensino-aprendizagem I: refletindo sobre a ortografia a partir de textos


Livro: Ortografia: ensinar e aprender
Artur Gomes de Morais
Editora Ática, 2002.


As situações que descreverei aqui foram organizadas no contexto dos princípios norteadores gerais e dos princípios de encaminhamento didático que apresentei no capítulo anterior. Algumas “atividades” são inspiradas em exercícios tradicionais, reinventados com a intenção de proporcionar a focalização de questões ortográficas e a conseqüente reflexão dos alunos sobre elas. Outras são mais inovadoras, pressupondo uma ruptura bem evidente com as atitudes de “medo do erro” arraigadas em tantos educadores.
Para desencadear a reflexão ortográfica tendo textos como suporte, as atividades que vimos realizando assumem três modalidades básicas:

● ditado interativo;
● releitura com focalização;
● reescrita com transgressão ou correção.

Explicarei e discutirei agora cada uma delas tomando, sempre que possível, exemplos concretos de vivências desenvolvidas em sala de aula.


Ditado interativo

Nesta primeira alternativa, em vez de aplicar um ditado tradicional – que cumpre geralmente apenas o papel de verificar os conhecimentos ortográficos -fazemos um novo tipo de ditado, no qual buscamos ensinar ortografia, refletindo sobre o que está escrevendo. Ditamos à turma um texto já conhecido, fazendo pausas diversas, nas quais convidamos os alunos a                     focalizar e discutir certas questões ortográficas previamente selecionadas ou levantadas durante a atividade. Os alunos sabem que o ditado é para isso e já voltam sua atenção para refletir sobre dificuldades ortográficas.
A opção por um texto já conhecido das crianças não é gratuita. Se o texto já foi lido e discutido, o grupo já estabeleceu com ele uma interação apropriada, tomando-o como unidade de sentido. Isso permite que o ditado interativo não repita a velha tradição de usar um texto como mero pretexto para a condução de exercícios de análise lingüística. Por outro lado, o fato de as crianças terem lido o texto previamente, já terem discutido os significados que elaboraram em torno dele, propicia que, no ditado, voltem sua atenção para as palavras que o professor focaliza ou que elas mesmas escolhem como tema de discussão.
Isto é, durante o ditado o professor faz várias interrupções, nas quais pergunta aos alunos se na frase ditada há alguma palavra que acham mais “difícil” ou indaga explicitamente se determinada palavra é “difícil”. A cada palavra tomada como objeto de discussão, examina-se por que ela constitui uma fonte de dificuldade. Para isso, propõe-se aos alunos que operem transgressões mentalmente (ou por escrito) e se discute por que a forma X seria errada, por que a forma Y seria correta, etc.
Ao realizar o ditado como a turma, o professor pode propor a focalização das palavras que contêm determinada dificuldade ortográfica. Se ele, por exemplo, está querendo focalizar o emprego do O ou do U no final das palavras, após ditar uma frase onde aparece a palavra “ cavalo”, pode lançar questões do tipo:
●Uma pessoa que não sabe escrever a palavra “cavalo”, como poderia se enganar? Por quê?
●E uma pessoa que sabe escrever, como colocaria? Temos como saber por que só se pode escrever com O no final?

            E assim segue, interrompendo o ditado para focalizar outras palavras que contenham a dificuldade em pauta.
Mas o professor também pode ser menos diretivo e deixar que as crianças expressem o que elas consideram difícil. Nesse caso, ao interromper o ditado, ele pode, por exemplo, pedir que as crianças digam se alguma palavra é difícil, indagar que “pedaço” da palavra pode fazer com que uma pessoa erre ao escrever e seguir com a reflexão, nos mesmos moldes exemplificados no parágrafo anterior: identificando que foram errôneas poderiam aparecer quando alguém que não soubesse escrever corretamente fosse colocá-las no papel e discutindo com a turma se existem ou não regras que possam nos dar segurança sobre qual letra é a correta. Note-se que, ao pedir aos alunos para levantar formas errôneas, o professor está fazendo com que eles pratiquem transgressões que passam a ser objeto de reflexão.
Enfatizo que a transgressão intencional não é usada aleatoriamente. Vimos no capítulo 3 que para transgredir intencionalmente é preciso ter um conhecimento mais elaborado, mais explicitado, da regra ou irregularidade que se decide violar. Desse modo, fazemos com que as crianças tomem consciência das propriedades regulares e irregulares de nossa norma, convidando-as também a transgredir. Antecipando formas erradas, isto é, transgredindo, elas demonstram o que sabem sobre nossa norma ortográfica, e nós passamos a dispor de um rico material para discutir com a turma.
Retomando o que dizia sobre o encaminhamento do ditado interativo, o próprio professor pode fazer a seleção das palavras sobre as quais se vai discutir, ou deixar aos alunos essa tarefa, ou ainda conciliar as duas alternativas (tanto o professor como os alunos indicam sobre quais palavras se discutirá). Na primeira opção, quando é o professor quem focaliza, ganha-se a possibilidade de centrar mais a reflexão sobre determinada questão ortográfica. Nas demais, os alunos são levados a desenvolver mais autonomia, a exercitar mais uma atitude de antecipação do que podem errar ao escrever. Nesse caso, nós, adultos, temos dados mais genuínos sobre o que nossos alunos julgam “fácil” ou “difícil” ao escrever, sobre quais são os pontos específicos da norma que eles conscientemente sabem constituir fontes de dúvida.
Farei um pequeno relato de uma situação concreta, desenvolvida numa turma de 3ª série de uma escola pública.
No início do ano, os alunos dessa turma ainda se enganavam muito quanto ao emprego do G ou GU, o que levou a professora a investir no ensino dessa dificuldade ortográfica.
            Como estratégia para iniciar um trabalho sistemático, ela realizou um ditado interativo com base num texto que havia sido previamente trabalhado na área de estudos sociais e que falava sobre o trabalho escravo. Não ditou o texto inteiro, já que o interesse era desencadear uma reflexão com a turma sobre a disputa entre o G e GU.
O parágrafo ditado e discutido apresentava o seguinte conteúdo: “Os portugueses trouxeram os negros para o Brasil./ Os escravos trabalhavam nos canaviais/e guardavam os engenhos./ Os capatazes guiavam os negros às plantações/e os vigiavam /fazendo o trabalho./ Quem não obedecesse era castigado”. As barras (/) que coloquei ao longo do parágrafo indicam as frases
ditadas e marcam os momentos em que se fizeram interrupções para discutir com os alunos o que eles tinham acabado de escrever. A mestra tinha optado por focalizar algumas palavras (portugueses, negros, guardavam, guiavam, castigado). Como na maioria das situações didáticas, surgiram novidades, e foi preciso fazer ajustes, ampliar o universo de expectativas iniciais.
Durante os momentos de debate, as crianças disseram que não era difícil escrever o GUE de “portugueses”, mas, mesmo assim, não houve resistência a discutir como “uma criança que está na primeira série”, “que está aprendendo a escrever”, poderia se enganar na notação dessa palavra. Verbalizaram que o som era “guê”, que o novato poderia usar um G só, mas que “ficava com o som de ´gê´”. Já no caso de “ guiavam”, uma palavra menos familiar que “portugueses”, alguns alunos disseram que era difícil. Anteciparam como erros possíveis não só a substituição do dígrafo GU pelo G, mas também a substituição pelo QU, e, novamente, justificaram que a palavra não podia ser escrita de forma diferente porque “senão o som ficava diferente”.
Em outros momentos, as crianças puderam indicar o que, no trecho escrito, lhes parecia difícil, e surgiram então discussões sobre outras questões ortográficas, que não o emprego de G ou GU. Por exemplo, vários disseram que “engenhos” era uma palavra difícil, e a maioria disse que não sabia se era com G ou J, “porque ficava com o mesmo som. Quando a professora perguntou se havia algum jeito de saber qual letra usar em “engenhos”, alguns insistiram que se sabia “pelo som”. Foi preciso discutir se havia alguma diferença em usar G ou J naquela palavra.  Quando viram que “o som ficava a mesma coisa”, um aluno propôs então que era preciso ver no dicionário.  E assim fizeram, concluindo que, para escrever certo, tinham que decorar a forma encontrada no dicionário. Nova discussão ocorreu quando se tratou da forma verbal “obedecesse”, outra palavra que as crianças identificaram como difícil, embora a professora não tivesse planejado discuti-la.
Como se pode ver, a flexibilidade na condução do ditado interativo permitiu aos alunos participar da reflexão ortográfica, colocando seus pontos de vista, e usar o dicionário num contexto de necessidade natural. Ressalto que a situação agora resumida foi a primeira atividade de um processo mais longo de ensino sistemático, durante o qual a mestra enfocou mais detidamente com sua turma o emprego do G e do GU. Em nenhum momento houve a expectativa de “encerrar” o trabalho em torno daquela dificuldade com um ditado interativo. Se o vemos como uma estratégia para promover a reflexão ortográfica, sobretudo para iniciar a discussão sobre determinadas questões de nossa norma escrita, não esperamos que tenha efeitos “instantâneos” sobre o rendimento dos alunos.

Releitura com focalização

Um encaminhamento semelhante ao do ditado interativo é usado na releitura com focalização. Durante a releitura coletiva de um texto já conhecido, fazemos interrupções para debater certas palavras, lançando questões sobre sua grafia.
Insisto em que se trata de uma releitura, na qual os alunos refletem sobre as palavras de um texto já conhecido. Interessa-nos manter a coerência mencionada na seção anterior: como unidades de significado e materialização de processos discursivos, os textos escritos existem para serem lidos, comentados, “degustados”. Usar um texto desconhecido para desencadear a reflexão ortográfica seria distorcer a natureza e as finalidades do ato de ler um texto pela primeira vez.(1)
Ao reler o texto, incentivamos as crianças a focalizar a atenção na grafia das palavras. Vimos no capítulo 5 que alguns leitores fluentes têm dificuldades ortográficas. E que, segundo os estudiosos desse tipo de problema, a causa poderia estar na forma como esses bons leitores processam o texto escrito: como identificam com muito automatismo as palavras lidas, elaboram os significados do que lêem sem se deter nas unidades gráficas das palavras. Na atividade que agora comento, o interesse é justamente investir na possibilidade de adquirir informação sobre a ortografia por voltar-se a atenção para o interior das palavras.
Mais ainda que no ditado interativo, é fácil o professor controlar as palavras sobre as quais deseja refletir com os alunos.
            Mas nada justifica que ele também não deixe os alunos expressarem o que acham difícil no conjunto das palavras lidas.
Durante a releitura, a cada frase ou trecho lido, o professor pára e lança questões, estimulando os alunos a elaborar (mentalmente ou no papel) transgressões e a debatê-las, expressando os conhecimentos que têm sobre regras ou irregularidades.
Ilustrando com uma situação concreta, na mesma turma de 3ª série, a professora decidiu, no segundo semestre, desencadear uma reflexão sistemática sobre o emprego de R ou RR, uma questão que várias crianças da classe não tinham ainda superado. Para tanto, optou por não iniciar o trabalho com um ditado interativo, mas com a releitura de uma fábula de Esopo que tinham lido há pouco: “A cigarra e a formiga” (2).
O texto escolhido, que havia sido lido, comentado e reescrito na semana anterior, continha muitas palavras que propiciavam a discussão sobre o emprego de R ou RR: palavras como “cigarra”, “formiga”, inverno”, “verão”, durante”, “trabalho”, “trigo”, “respondeu”, etc. Com exceção de um único contexto de emprego de R (quando ele aparece depois de consoantes em palavras como “honra” e “desrespeito”), todas as demais formas de emprego de RR e R estavam presentes no texto selecionado.
É importante considerar que, àquela altura do ano letivo, as crianças já estavam mais habituadas ao tipo de reflexão ortográfica introduzido no primeiro semestre. Por outro lado, como na situação de releitura os alunos não têm que investir tempo no registro do texto (como acontece no ditado), a professora encaminhou o trabalho de modo a centrar a discussão quase exclusivamente nas palavras que queria focalizar com a turma. E os meninos e meninas verbalizaram muito seus conhecimentos, que, posteriormente, materializados sob a forma de regras, foram registrados em seus cadernos e no “quadro de regras”. sobre o qual falarei no próximo capítulo.
Naquele dia, já expressaram a seu modo alguns dos princípios gerativos que nos dizem quando usar R ou RR. Mais exatamente, disseram que:

●”No começo das palavras não se escreve com RR. Só usa RR no meio ou no fim”;
●”Quando o som é forte, como o R de ´rato´, e aparece no meio das palavras, entre vogais, tem que ser RR”;
●”O R quando está no começo das palavras é forte”;
●”Usa um R só quando tem o som fraco no meio da palavra e no fim”.

Aquele foi o primeiro dia de uma seqüência didática que se desenvolveu em sete ocasiões (com duração de 20 a 30 minutos em cada dia), durante duas semanas. Nas ocasiões seguintes, as crianças realizaram atividades específicas em que classificavam e formavam palavras reais e inventadas que continham R e RR. E avançaram na formulação das regras que iam discutindo.


Reescrita com transgressão ou correção

Geralmente, quando reescrevemos um texto, nossa intenção é aprimorá-lo e, no que concerne à ortografia, corrigi-lo.
            Algumas das situações que descreverei agora envolvem corrigir, alcançar “a forma certa”. Mas, como o objetivo dos momentos de reescrita é especificamente refletir sobre as propriedades de nossa norma ortográfica, também lançamos mão do recurso de pedir às crianças que transgridam, reescrevendo “errado de propósito”. Assim como no caso das atividades há pouco descritas, nossa intenção real é discutir com eles os acertos ou erros que produzem/descobrem.
Há alguns anos, uma colega, Noêmia de Carvalho Lima, e eu pensamos em usar as historinhas do Chico Bento, personagem de Maurício de Sousa, como recurso para refletir com as crianças sobre questões ortográficas. Para quem não o conhece, esclareço que esse personagem é um menino que mora no campo, filho de agricultores pobres e que, como muitas crianças brasileiras, trabalha e estuda e ...não se sai bem na escola. Além de ingênuo e “ecologicamente correto”, o cativante Chico Bento se caracteriza por falar um dialeto rural que é “transcrito” pelos autores na revista em quadrinhos onde aparece.
A idéia de colocar as crianças em contato com essa revista desencadeou muitas resistências na maioria das professoras com quem trabalhávamos. Sua reação tinha como pano de fundo a seguinte questão: Se os alunos já erram ao escrever, por que expô-los a mais erros ainda? Compreendendo a origem de tal preocupação, discutimos com as mestras a concepção mecanicista que estava por trás de seu medo: a velha crença de que o aluno aprenderia passivamente, que ele “fixaria o que vê”, sem capacidade de refletir e reelaborar seus conhecimentos.
Depois de algumas negociações, conseguimos “vender” nossa proposta e começamos a desenvolver nas turmas (de algumas daquelas professoras) situações de reflexão ortográfica com as revistinhas do Chico Bento. Apresentarei agora alguns dos encaminhamentos experimentados.
Depois que as crianças leram os gibis em diferentes ocasiões, se familiarizaram com o personagem e descobriram que ele “falava errado”, resolvemos propor atividades mais específicas. Num primeiro caso, escolhemos uma “tira” pequena e lhes pedimos que identificassem o que havia de errado na escrita da história. 
As crianças detectaram que, nesse texto, os verbos (no infinitivo) sempre apareciam sem o R final (“apagá”, fritá”, “fazê”). Viram também que certos erros tinham a ver com o modo como os personagens Chico Bento e Zé Lelé falavam (“vamo”, “ocê”, “pru”, “armoço”). A tarefa permitiu desencadear uma discussão mais geral sobre como pessoas de diferentes regiões ou grupos sociais falam distintamente nossa língua, sobre o cuidado que precisamos ter ao escrever, já que não escrevemos tal como falamos. Contudo, interessava-nos explorar mais a situação. E propusemos aos alunos que reescrevessem a mesma história, mas, em lugar de escrever uma história, em quadrinhos, contassem o que tinha acontecido, sem usar diálogos.
A situação foi planejada de modo a incluir uma reescrita com correção, sem explicitar aos alunos que eles deveriam eliminar os erros. Ao transformar os diálogos em discurso indireto, nada justificava a manutenção, na escrita, dos traços da pronúncia dos personagens. E os alunos localizaram esse tema. A partir de questões levantadas por alguns deles (“Mas a gente não vai mais escrever errado, não é, professora?”), discutiu-se com o grupo como deveria proceder. Ao final, os próprios alunos constataram que, como eram eles que iriam contar a história, não tinham por que repetir os erros do original.
Comecei relatando essa situação de reescrita propositalmente, porque, além de enfocar a ortografia e envolver um trabalho de transformação de gêneros textuais (quadrinhos → narrativa), não assume o tom carregado de propor às crianças a tarefa de “fazer desaparecer o erro”. Creio que precisamos ser cautelosos quando falamos de reescrita com correção. Em várias escolas onde se pratica um ensino mais tradicional de ortografia, tenho encontrado como inovação o emprego de fichas nas quais o aprendiz deve corrigir textos ou palavras que contenham erros. Se essa pode ser uma alternativa de trabalho, parece-me importante que não se torne uma alternativa dominante, sobretudo porque a tarefa de corrigir feita desse modo frequentemente não adquire um sentido nem inclui um contexto de discussão.
Quando a escola só pede às crianças que transformem o “errado” em “certo”, contribui para a manutenção de preconceitos lingüísticos, pois não questiona os critérios (ideológico, históricos, sócio-políticos) que levam as pessoas a acreditar que certas formas de usar a língua são as únicas “boas” ou legítimas – enquanto as muitas outras formas variantes são tratadas como “erros de português”, “degenerescências do idioma” (3). Ao enfocar as questões ortográficas, temos defendido uma postura diferente. A fim de “descriminalizar” o erro – e usá-lo como fonte de explicitação, de tomada de consciência -, optamos por transformar as situações de reescrita em uma via de mão dupla: atuamos com as crianças indo tanto”do errado ao certo” como do certo ou errado” (e, lembro, sempre discutindo o que fazem!!!).
Retomando o trabalho com as revistas do Chico Bento, em outra ocasião pedimos aos alunos que reescrevessem os diálogos da história (a mesma), mas que o fizessem com mais erros ainda. Assim como quando propusemos a situação há pouco descrita, eles gostaram da atividade, em que puderam revelar e discutir seus conhecimentos ortográficos. Ao transgredir, modificam, por exemplo, a notação do gerúndio (usando, por exemplo,”pegano” no lugar de “pegando” e “levano” em vez de “levando”) e comentaram que o autor devia ter escrito assim, dadas as características do personagem: uma criança do meio rural. Isto é, tal como no primeiro dia, discutiram questões relativas às variações de pronúncia existentes em nosso país. E...investiram em questões ortográficas regulares e irregulares, substituindo letras que “competem” entre si em determinadas correspondências letra-som (“Chicu” por “Chico”, “fogu” por “fogo”, “oji” por “hoje”, etc.).
Em outras situações, usamos mais tirinhas ou histórias de Chico Bento, além de outros textos que não eram histórias em quadrinhos. Em todos os casos, ao reescrever – com transgressões ou correções -, as crianças tinham a oportunidade de tratar a ortografia como um objeto de conhecimento, como algo que se aprende/internaliza por meio de reflexão.

(1) Só os profissionais que trabalham como revisores de textos é que se defrontam com as circunstâncias de ler algo desconhecido para encontrar problemas de ortografia, pontuação, concordância gramatical, etc.

(2) Naquela unidade as crianças estavam trabalhando sistematicamente a leitura e a reescrita de fábulas.

(3) Para quem se interessar pelo tema, sugiro trabalhos como os de Magda B.Soares, Linguagem e escola; uma perspectiva social, São Paulo, Ática, e de Eglê Franchi,  A redação na escola...e as crianças eram difíceis, São Paulo, Martins Fontes.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Estudo da Área de Códigos

Teremos encontro no próximo sábado, dia 3/09/2011, às 10h.
Contamos com a presença de todos.
Todos os professores estão convidados a se inscreverem no BLOG para receber notícias automaticamente. Isso é feito digitando o seu email ao lado no campo "Siga-nos por email! "

Tânia
Coordenação CMM

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Bem Vindo ao BLOG da Equipe Pedagógica Montessori

O Departamento da tecnologia da informação do CMM convida a todos os membros da equipe CMM a se cadastrarem no BLOG. Usem a opção ao lado "Siga-nos por email!" para receberem atualizações e comunicados da coordenadoria.

Um grande abraço a todos.

Equipe da TI
CMM